Nas Paradas da Gegeu

Arraiá do Tiago

Pai,

ontem fez 19 anos sem você. E pra deixar minha saudade ocupada, resolvi fazer um arraiá pro seu neto. A gente não vai pro Brasil no inverno e ele não sabe o que é São João na fazenda, sentir o cheiro de pólvora no ar, se assustar com os fogos, comer milho assado na fogueira, canjica, amendoim cozido, ouvir forró do bom e se vestir de caipira. Então resolvi fazer o melhor que pude, dentro de casa e sem nenhum nordestino por perto.

Comprei papel de seda colorido, cola e um cordão grande e cortei as bandeirolas com ele no meu colo. Me lembro de fazer isso com Lila em Paraíso e de grudar o dedo todo na cola... engraçado que agora que sou adulta eu sei colocar o tanto certo de cola pra não grudar o dedo, mas não adianta ter essa destreza que o menino se mexe demais no meu colo e termina esculhambando tudo. Mas a casa ficou linda, toda colorida e ele passou dias apontando pra cima e gritando de felicidade.

O próximo passo foi fazer o bolo de aipim. Peguei uma receita na Internet mesmo, mas resolvi fazer que nem minha mãe mandava - ralando tudo na mão. O negócio é que "ralar NA mão" é irmão gêmeo de "ralar A mão" e tanto a esquerda quanto a direita não sobreviveram aos golpes do coco malígrino.

Daí eu me animei e cozinhei bem uns dois quilos de amendoim - deu foi trabalho pra achar o ponto do sal. Acho que despejei um frasco de sal inteiro na água e o bicho ainda assim não ficou salgado.

Aí eu me achei toda dona de casa e resolvi fazer mais um bolo e uma canjica. Tinha 12 anos que não comia canjica, que era a minha guloseima preferida de São João. Acho que era a sua também, né? Peguei a receita com minha amiga Daniella:

• 3 espigas grandes de milho
• 500ml de leite de coco (do coco cortadinho e batido com água morna)
• 2 colheres de sopa de açucar
• 1 pitada de sal
• Bate tudo no liquidificador, peneira e leva ao fogo - mexe até dar o ponto! Se precisar de mais açucar, vai acrescentando ao longo da mexida com colher de pau. Sentido horário, por favor!

Olha só que receita, né? O que é uma espiga grande? Quanto de água morna bate com o coco pra tirar meio litro? O fogo é médio, baixo, ou alto? Quando é que dá o ponto?

Eu te digo quando é o ponto: é quando você fecha os olhos e sente o cheiro que tá saindo da panela, e na sua mente fecha a imagem da sua infância e você vê uma mulher negra pequena e magra, com um vestido de algodão, e um pano enrolado na cabeça, e uma fatia de alho colada em cada têmpora. Aí você sabe que pode desligar o fogo, passar pra uma tigela e botar um pouquinho de canela por cima.

E São João não existe sem música, então eu fiz uma playlist com suas músicas favoritas. Coloquei umas que são a cara de Tunim também, queria que ele estivesse aqui. Você precisa ver como ele brinca com Tiago. A única música que não coloquei foi a da vaca estrela porque eu ainda não sei ouvir sem lembrar de você e aí me dá vontade de chorar. Esse São João não é de choro, né?

Esse é o São João que seu neto fica sabendo quem você é.

Saudades,

Sua garota

PS: Tiago tem seu cabelo. Quando eu lavo o cabelo dele, eu penteio pra trás que nem você fazia. Mas como não tem brilhantina, o cabelo volta a cair na cara dele.

Décimo-oitavo mês

Quando eu falei que estava grávida, uma colega minha de trabalho me disse:

Que maravilha, crianças são o milagre da vida!

e tudo que eu pensei foi que comentários como esse são o motivo pelo qual eu não frequento igreja.

Até hoje.

Ele chegou do parque no melhor humor de todos os tempos, correndo pela casa aterrorizando os gatos e chutando a bola.  Tentamos dar jantar, mas ele só queria saber das cerejas. Pensei tudo bem, hoje eu deixo ele comer o cupcake de aniversário. Não exatamente as calorias mais sadias, mas ele já tem um ano e meio! Não sei o que foi mais lindo - a boca escancarada pra caber mais bolo, ou a cara de maior felicidade do mundo ao comer.

Depois da emoção açucarada, voltamos ao quotidiano:  banho, massagem, guardar os brinquedos, escolher livros pra ler, ligar música clássica, leite na cadeira de balanço lendo juntos... Aí ele escorregou de meu colo e foi olhar um brinquedo que a gente comprou há 6 meses que ele não se interessou porque era muito avançado na época. Olhou, olhou e de repente começou a brincar, a mover as peças, a descobrir como montar o quebra-cabeça. Em silêncio, passou dez minutos manipulando o brinquedo em total concentração.

E tudo que eu consegui fazer foi ficar em silêncio ao lado dele, presenciando conhecimento, descoberta e conquista se desvendando na minha frente. Como o milagre da vida.

 

Santo Antônio deu a ele um milhão

 

E ele amou como a vida.

Reunited and it feels so good

Pra quem quem perguntou se Tiago ficou com saudades de Gilberto. O reencontro tá assim.

Rough Morning

Essa semana me dei conta que mesmo com 16 meses de experiência de ser mãe, ainda não sei nada.

Eu sabia que Maria ia pro Hawaii de férias - ela tinha pedido folga desde fevereiro. Desde então que tinha combinado com Yudi de deixar Tiago na creche em frente ao meu escritório. O lugar é de confiança, inclusive era a creche que eu queria colocar Tiago quando eu voltei a trabalhar. Mas foi chegar segunda-feira que me dei conta que Maria ia viajar na quarta de noite e de repente eu não estava mais à vontade de largar o menino com alguém que eu não conhecia.

Acordamos com Tiago chorando mais cedo que o normal. O berço tinha virado uma poça de vômito e bateu o desespero de mãe que nunca se viu nessa situação. Corre pra colocar o menino debaixo do chuveiro, com o tempo frio, o coração apertado. Depois do banho tomado e da roupa na máquina de lavar, Bibi vai pro trabalho.

Uma hora mais tarde Tiago continua chorando e eu acho que é fome, afinal de contas ele vomitou o jantar. Um copo de leite pra dentro, passa 10 minutos e um copo de leite todo pra fora - tipo O Exorcista. Quando chegou Maria eu estava uma pilha de nervos, sem querer ir pro trampo e deixar o bichinho assim. Passei a segunda com a cabeça no menino, ligando de hora em hora pra saber do progresso.

Terça-feira ele acorda melhor, mas Yudi e Maria acordam doentes. Passo o dia trabalhando de casa, entre comprar remédio pro marido enfermo, ligando pra babá pra saber se ela estava melhor, e lidando com Tiago que só queria colo o tempo todo. Embora ele tinha parado de vomitar, o apetite era não existente - coisa que nunca acontece.

Quarta-feira Tiago, Yudi e Maria estavam melhores, mas o meu coração estava ainda apertado. Fiz uma visita a creche e mesmo vendo tudo arrumadinho, não tinha paz. No dia seguinte me dei conta do porque.

Foi chegar na creche com Tiago, ver a sala de aula com a porta de vidro, as crianças lá dentro todas felizes, as professoras tão amáveis... e Tiago abriu o berreiro e se segurou na porta pra não entrar - EXATAMENTE como eu fiz quando minha mãe me levou na Edem e depois no Marista. A sensação de primeiro dia de aula, a ansiedade de ficar sozinha num lugar cheio de gente estranha. 

Terminou que ele - e eu - sobrevivemos a experiência. A quinta-feira foi mais tranquila. Depois de brigar pra entrar na sala ele terminou se entretendo com os brinquedos novos e esqueceu da gente. Mas na sexta-feira ele já sabia o que ia acontecer e se agarrou na minha perna, chorando lágrimas grossas. Eu tentei acalmar a fera, mas não teve jeito. Da porta da creche eu ouvia o berro dele, e quem chegou aos prantos no trabalho foi eu. A sensação de pior mãe do mundo, que abandona o menino com estranhos por conta de minhas prioridades fora de prumo.

Quando Yudi chegou com ele da creche, o relatório indicava "rough morning". Pra todos nós, tio. Todos nós.